Foto da usuária Liselott do Flickr cadastrada para uso não comercial. https://www.flickr.com/photos/liselotts/4461197648/ |
O Brasil vive evidentemente um choque ideológico, um conflito prenunciado durante a campanha que se manterá ainda por muito tempo. São dois lados que precisam um do outro para sua afirmação identitária e no meio deste conflito as ideias empobrecem, principalmente pelo que eu identifico como a falha na argumentação de cada um dos lados. Entre os intelectuais, reina a empáfia e entre os grupos que ajudaram a eleger Bolsonaro (que possui muito poucos intelectuais), há uma autoconfiança insolente, totalmente injustificada. É como aquela famosa frase de Bertrand Russell:
"O problema com o mundo de hoje é que os estúpidos estão excessivamente confiantes e os inteligentes cheios de dúvida."
Eu completaria essa frase avisando ao Russell que por aqui, e neste momento, o buraco é mais embaixo. Separar o mundo entre inteligentes e estúpidos é simplista. É preciso duvidar da inteligência dos inteligentes e da estupidez dos estúpidos. Os intelectuais precisam de uma chave melhor para interpretar o país e os movimentos sociais conservadores necessitam de sofisticar e aprofundar sua linha de argumentação, que são extremamente superficiais, de causar vergonha.
Categorizando melhor cada um desses grupos, de um lado, há os intelectuais, perplexos com o resultado eleitoral, incapazes de entender o povo que pretendem descrever. Buscam analisar o resultado eleitoral e chocados dizem que está errado tudo que está aí. Isso nada mais é do que uma admissão velada daquilo que não compreendem. A principal manifestação desta arrogância ocorreu ao negar a possibilidade de vitória de Bolsonaro, não descem do pedestal. Um renomado estatístico previu, ainda no primeiro turno, 99,4% chance de vitória para Haddad. Essa foi a síntese quantitativa desta presunção do conhecimento. Também traduzida em n análises sociológicas com n10 variantes. Esses 'especialistas' basicamente diziam não haver "possibilidade da direita ganhar por meio do voto", frase que me foi assim resumida por um amigo que acredita na tese do golpe.
Do outro lado, nós temos o orgulho da ignorância, são muitos os estúpidos confiantes. A manifestação mais evidente disto ocorre quando não admitem os erros da ditadura brasileira, uma tentativa infrutífera, insensível e cínica de "justificar" a tortura. Um argumento que me parece antigo mesmo se analisado por dentro do exército. Ataques que ferem totalmente o bom senso e o amor ao próximo. Iguais exemplos de boçalidade se mostraram também na campanha louca contra as urnas eletrônicas e na deturpação despropositada e desnecessária de fatos históricos sedimentados. Há até uma ligação maluca do próprio Bolsonaro entre o ornitorrinco australiano e a diversidade de fauna na Amazônia. Teve maluquice de todos os gostos nessas eleições, é só escolher.
Posso resumir essa ignorância presunçosa em um só episódio que poderá se tornar recorrente, ele sintetiza o comportamento. Numa humildade incomum em políticos e que julgo mais acertada do que o "finge que sabe", que inclusive pode ser lembrado dos discursos da saudosa presidenta, Bolsonaro disse que não entendia nada de economia e que sobre essas coisas o melhor era perguntar lá no "Posto Ipiranga" dele, que seria, no caso, o economista-chefe do seu programa de governo: o Paulo Guedes. Mesmo que engraçada em primeiro momento, essa atitude configura um problema: o de não buscar saber, a acomodação intelectual, aquela que não checa e para qual, as evidências, mesmo que contundentes, não são suficientes. Um presidente não precisa mesmo saber de economia, se fosse assim, bastava um concurso entre os diplomados e não uma eleição. O Haddad é mestre em economia, o que não o impediu de manifestar propostas descabidas que atacam a lógica econômica na reta final de sua campanha.
Um presidente precisa representar os anseios do povo e Bolsonaro soube aglutinar isso melhor que seus opositores.
Essa representação dos anseios é algo que até hoje, uma semana após os resultados, os intelectuais dos mais variados matizes no Brasil estão com dificuldade de entender. A campanha foi feroz, apesar de todos impropérios ditos pelo Bolsonaro terem sido explorados pelos adversários, isso não foi o suficiente para retirar sua maioria. A vitória de Bolsonaro era mesmo muito improvável, o PT gastou 37 milhões de Reais em sua campanha e o PSL 2.4 milhões, ou seja, a campanha vencedora gastou 6,5% do que gastou a que ficou em segundo lugar. Foi uma luta de Davi contra Golias, PT usou toda sua máquina, as duas últimas semanas de campanha de Haddad evidenciaram isso ao extremo, teve aluguel de avião para alcançar quase todos os estados do Nordeste, comícios nas principais cidades, adesivos e banners por toda parte.
A Folha fez uma matéria-denúncia extremamente "trucada" da relação da campanha de Bolsonaro com empresas que o haviam favorecido pelo apoio do disparo de mensagens pelo Whatsapp. Não muito misteriosamente quando se entende com quem estava a grande mídia nacional, o jornal deu pouca sequência a estas denúncias. O PT usou a própria matéria para protocolar pedido de impugnação da candidatura de Bolsonaro no TSE. Ciro veio logo na cola para dizer que ele deveria disputar o segundo turno por ter sido o terceiro mais votado. Ficou evidente a orquestração desesperada.
Qual é então a melhor chave para interpretar o país? Muitos chamaram atenção para o voto-protesto e o voto anti-sistema, mas acho essas explicações incompletas. Uma opinião que achei interessante, mas muito otimista é a que expressou Carlos Nepomucemo em trecho da entrevista ao Luciano Pires do Café Brasil. Na visão dele, o Brasil passa agora por uma revolução republicana, que seria fazer as leis realmente valerem para todos no Brasil, algo que não acontece até o momento. Eu duvido muito que estejamos passando por uma revolução no sentido canônico do termo, mas realmente há elementos interessantes para serem analisados.
Os grupos de apoio de Haddad constituíram-se basicamente de cinco grandes classes: 1) A da elite extremamente rica ligada à mídia (veja a postura da maioria dos grandes veículos de comunicação, exceção da TV Record que citarei a seguir) e dos bancos (esses temiam a insegurança do governo do PSL); 2) Industriais, principalmente aqueles que foram beneficiados pelas diversas políticas de financiamento, subsídios e proteções do período do PT; 3) Parcela expressiva, mas não majoritária, da classe média alta, aquela que se auto declara socialista, são os socialistas do Leblon e demais burgueses engajados do tipo; 4) Os grupos minoritários engajados, professores do ensino superior, movimentos afirmativos de cor, gênero e identidade sexual e 5) a classe de baixa renda, baixa instrução e fortemente dependente da assistência social. Esse eleitor tinha uma memória extremamente positiva do período Lula e esse foi um dos fatores que explicou a vitória de Haddad no Nordeste.
Pelo lado do Bolsonaro foram seis grandes e diferentes grupos: 1) Grande parcela dos militares, grupo óbvio pela origem do candidato; 2) Várias classes burguesas ligadas ao setor de serviços, vendas e investimentos, essa alta burguesia foi muito incorporada pela figura do Luciano Hang, dono da cadeia de lojas da Havan, há também a alta burguesia dos 'donos de Igreja' extremamente representada por Edir Macedo e sua emissora Record, que foi francamente pró-Bolsonaro; 3) Pequenos empresários, classe média intermediária e baixa. Acho que esse é o principal corpo de votantes do Bolsonaro, são pequenos empresários que estão afogados em contas, tiveram que demitir e precisam hoje, com urgência, da recuperação econômica. Esse grupo entendeu parte da retórica anterior e das explicações anti-capitalistas que não funcionavam. A classe média intermediária passa pelas mesmas dificuldades e a baixa classe média é aquela que está desempregada ou teve de recorrer à informalidade, coisa que gostariam de evitar; 4) Grupos religiosos evangélicos; no primeiro turno, Daciolo (o 6º mais votado) capturou muitos desses votos, muitos foram guiados por uma demanda na volta de costumes mais conservadores e com uma grande interseção com o grupo anterior; 5) Agronegócio e médios produtores do interior, em número de eleitores esse grupo não é expressivo, mas ele em termos de área geográfica é muito representante do país e vocaliza parte dos anseios do Brasil rural e interiorano; 6) Grupos de direita e libertários engajados, numericamente muito pequenos mas bastante ruidosos nas redes sociais.
Pelo lado da esquerda, os grupos 4 e 5 forneciam o grosso da votação e os grupos 1 a 3 forneciam as linhas de argumentação intelectuais, uma tentativa de roupagem sofisticada, social e sensibilizada, que tentou se manifestar no segundo turno. Ao mesmo tempo que se faziam ataques ferozes à falta de humanidade ao adversário, gritos de ordem de "não ao fascismo", "ele não" e demais iniciativas. Vários pontos desses grupos de apoio feriam as ideias comportamentais do brasileiro médio e algumas delas eram realmente imperscrutáveis para o brasileiro comum. Pelo lado da direita, um misto de 2, 3 e 4 compõem a maioria dos votos; o grupo 1, do qual Bolsonaro faz parte, é o que mais fornecia "munição" (perdão do trocadilho) para os aclames de fascista, nazista, homofóbico e afins. Minha opinião é que boa parte do revisionismo dos militares é precário e precisa ser melhor, deveriam admitir abertamente os erros passados. O grupo 6 pode ser resumido como o grupo dos memes, mídia social e do barulho, muito importante dado que a campanha do Boslonaro teve base principalmente na internet. Finalmente, o grupo 5 reforçava alguns dos valores morais e o apoio econômico de um dos únicos setores que cresceu com mais constância nesses períodos mais difíceis: a agricultura.
Os intelectuais não perceberam esses movimentos dos grupos que apoiaram a figura do Bolsonaro e que inclusive ajudaram a esvaziar o PSDB. Os tucanos foram esvaziados por um projeto de longo prazo do PT, colando a imagem de candidato-chuchu ao Alckmin. A própria direita rejeitou o discurso moderado como um discurso viável para baterem os seus oponentes. Em parte por conta do PSDB ter esses mesmos membros da intelectualidade que não estavam entendendo nada e não admitiam a possibilidade do improvável. A mídia e a intelectualidade internacional, muito subsidiada por essa construção interna que era repassada pelos nossos principais meios de comunicação e por um entendimento do Brasil sob suas lentes, não podia entender o que estava se passando.
O Brasil é um país pouco escolarizado, mesmo os argumentos de elite são pouco sofisticados, faltam direitos básicos e falta dinheiro. É nesse contexto que Bolsonaro, mesmo que muito contraditório, arcaico e com discurso tosco, e talvez justamente por isso, pela simplificação do discurso, capturou vários anseios populares que precisavam de vazão.
O Brasil é um país pouco escolarizado, mesmo os argumentos de elite são pouco sofisticados, faltam direitos básicos e falta dinheiro. É nesse contexto que Bolsonaro, mesmo que muito contraditório, arcaico e com discurso tosco, e talvez justamente por isso, pela simplificação do discurso, capturou vários anseios populares que precisavam de vazão.
O país sempre foi um país de muito dirigismo estatal e com o Estado tomando decisões de cima para baixo, com pouca participação da população. Obviamente, após a democratização, vários avanços de inclusão ocorreram, o país não quer retrocesso nisso. Tampouco parecem desejar a volta aos regimes autoritários. A eleição foi ganha pelo nanico PSL porque a voz do brasileiro médio estava sendo pouco ouvida, uma voz que apresenta ceticismo em relação às mesmas soluções adotadas durante anos. Setores de esquerda e centro-esquerda hegemônicos sempre despejaram críticas rancorosas à inciativa privada, ao comércio, e advogavam por serviços públicos que visivelmente não funcionam pelo preço que custam à sociedade. Ao mesmo tempo em que o Estado e empreiteiras se unem para fazer um esquema fraudulento de manutenção do poder. Intelectuais falharam e continuam falhando fragorosamente em perceber isso, e os "ignorantes" precisam desejar sair dessa condição de argumentos rasteiros e pegadinhas do tipo "te peguei". Vamos precisar muito mais do que isso para encontrar as soluções que o país precisa.
3 comentários:
Belo texto. Boa comparação.
O problema das pessoas não é um Partido. Essa é só mais uma das coisas que elas amam odiar.
O problema das pessoas não é abominar a corrupção... Elas admitem tranquilamente uma corrupção seletiva. Tampouco sua dificuldade é com o medo da violência: apoiam mais armamento, mais ódio, mais guerra, pedem a volta da ditadura. Você não quer paz.
As pessoas querem odiar em paz.
Querem o fim dessa cultura do "mimimi", do "politicamente correto", do "hoje em dia não pode mais nada".
As pessoas odeiam pobre. Odeiam gay. Odeiam negro. Odeiam idosos e pessoas com deficiência. Odeiam grávidas e crianças. As pessoas querem poder queimar índios e escapar ilesas. Beber, dirigir, matar e só pagar uma fiança baixinha. Querem poder bater nos seus animais. Querem violentar e abusar de mulheres sem que ninguém meta a colher... mulher minha, mando eu. Querem destilar sua raiva, xingar, desrespeitar e chamar isso de "liberdade de expressão" ou de "brincadeira, mal entendido". Amam o estrangeiro branco europeu, mas o refugiado preto e pobre só traz doença e rouba emprego. Querem poder manter pensões vitalícias, passando geração a geração e dizer que quem recebe benefício social é vagabundo. Que quem está em situação de rua pode muito bem trabalhar, pede esmola porque é mais fácil. Querem receber auxílio moradia, ocupando imóvel funcional. Querem sonegar imposto, burlar a multa.
As pessoas não querem um Brasil melhor... Querem eleger um representante para as suas mazelas, alguém que lhes permita ser quem são.
Ninguem esta pedindo a essas pessoas para matar ou fazer isso, elas fazem por prazer, por que querem, então não adianta culpar governante ou presidente, cada um é responsavel por suas mazelas.
Não existe vítimas, deve ser respeitado o desejo de mudança e os votos que o elegeram e as pessoas que pensam diferente, e rezar pra que as coisas melhorem e não torcer para ter razão.
Temos os dois lados da história agora. O medo é o ódio que com essas eleicoes de 2018 passaram a caminhar lado a lado. infelizmente.
Bom texto!
Obrigado pelos comentários, Lia e Warlen.
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