sábado, 1 de junho de 2019

Perfil dos Alunos do Ensino Superior (as Boas e as Más Notícias)

Estou com muito trabalho para essa semana e logo no começo dela um grupo de alunos e representantes dos técnicos pediu minha licença para conclamar o apoio dos estudantes para a manifestação de quarta-feira dia 30 de Maio. É muito importante esse diálogo, quanto mais civilizado, mais produtivos podem ser os avanços. O pedido foi justo, dentro dos limites da cortesia, educação e do tempo razoável, mesmo que eu não concorde com a linha de argumentação, acho importante esse espaço.

Aliás, a reivindicação dos estudantes, professores e técnicos que se manifestaram é bastante justa.* 

Porém, o que chamou minha atenção foi um panfleto distribuído que trazia dados e uma conclusão, eis o trecho:

"Os dados mostram que, nas universidades Federais, 70% dos estudantes tem renda de até um salário e meio, mais de 60% estudaram em escolas públicas, 43% são brancos e mais de 50% são negros. A universidade se tornou melhor quando se abriu para o povo nos últimos anos. É contra isso que o governo se coloca, lançando mentiras e ataques contra os estudantes e servidores técnico administrativos e professores" (Grifo dos autores)

Como todo bom panfleto, não há fonte para os dados e também não é assinado, no caso, nem ao menos por uma unidade estudantil ou sindical. Tenho a impressão de ter me deparado, em 2017, com uma pesquisa sobre os discentes das Instituições Federais de Ensino Superior (as IFES) que era bastante favorável à interpretação de que as instituições são inclusivas. Infelizmente não consigo me lembrar do nome desta pesquisa, mas me disseram, na época, ter sido conduzida por um professor responsável e especialista no tema. Enfim, quem souber qual fonte fundamenta os dados do parágrafo entre aspas, pode trazer para o debate que podemos analisar as qualidades e defeitos de cada uma das pesquisas realizadas.

Concordo, em absoluto, com o trecho grifado pelos autores, porém, vou deixar para comentá-lo na parte das boas notícias deste texto.

***

Más Notícias


Como manda o costume, primeiro as más notícias. A dura verdade é que dados são difíceis de serem obtidos, bons dados são mais difíceis ainda. Se dados de qualidade precisam de bastante apuro, imagine o que se passa com dados de qualidade não tão acertada ou que não foram verificados por muitos. É por isso que uma pesquisa de amplo conhecimento é melhor do que uma pesquisa obscura e conhecida por poucos (há exceções).

Como não havia fonte no panfleto, achei que seria importante comparar com uma pesquisa recente da PNAD contínua feita em 2017 e que veio com um excelente suplemento sobre a educação (possuia também um bom enfoque para o ensino superior). A PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - é realizada desde 1976 pelo IBGE, é uma pesquisa amplamente conhecida com procedimentos já verificados por várias gerações de pesquisadores e constantemente aperfeiçoada. Desde 2012, a PNAD é feita por meio de entrevistas continuadas. A nova PNAD entrevista um mesmo domicílio 5 vezes (visitas trimestrais). Apenas em 2017 a PNAD contínua (abreviada para PNADc) foi disponibilizada para um público mais amplo de pesquisadores.**

Contrastando com os dados da PNADc 2017, o parágrafo citado possui dados não muito precisos. Primeiro porque falta uma base de comparação, ao dizer que "70% dos estudantes tem renda de até um salário e meio" é preciso ter um comparativo com a população. É preciso considerar que a população brasileira é tão ou mais pobre do que isso. Na verdade, nos dados da tabela 1, eu mostro que a população brasileira tem ao menos 15% a mais de pessoas na faixa abaixo de 2 Salários Mínimos (SM).

Tabela 1 - Renda Familiar Per Capita Brasil, Estudantes e pessoas com Curso Superior
Renda Familiar per capita
Brasil
Estudantes Superior IES Públicas
Estudantes Superior IES  Privadas
Curso Superior
Ate ¼ do SM
13.9%
5.6%
2.6%
1.5%
Mais de ¼ até ½ SM
19.1%
11.2%
7.4%
2.7%
Mais de ½ até 1 SM
29.1%
23.8%
22.6%
10.6%
Mais de 1 até 2 SM
23.0%
28.8%
35.1%
26.3%
Menos de 2 SM
85.1%
69.4%
67.8%
41.1%
Mais de 2 até 3 SM
6.9%
13.1%
14.8%
18.6%
Mais de 3 até 5 SM
4.5%
9.7%
10.5%
18.8%
Mais de 5 SM
3.5%
7.8%
6.9%
21.5%
Fonte: Dados de amostra da PNAD contínua IBGE 2017 (Suplemento Educação).

Era um pouco mais difícil fazer a divisão de 1.5 Salários Mínimos (SM) feita no panfleto, deixei o corte de 2 SM que está presente na variável "VDI5003" da PNADc. Repare que entre os estudantes de Educação Superior Pública, a segunda coluna, 70% deles possuem renda familiar per capita menor que 2 SM (valor de R$ 1874.00 em 2017). Para o Brasil temos 85.1% dos indivíduos com renda familiar per capita menor do que 2 SM. Sendo bem claro: "O brasileiro médio é mais pobre do que o estudante médio, tanto nas instituições públicas quanto nas privadas". Isso pode ser observado comparando a primeira coluna de dados com a segunda e terceira. A quarta coluna (pessoas que já concluíram o ensino superior) deixarei para comentar na segunda parte do texto.

Na tabela 2 há a renda habitual do trabalho do estudante (mediana e média). A renda mediana do estudante do ensino superior público é igual a mediana no Brasil, porém, note que a média de renda do Estudante de ensino superior é maior do que a do estudante do ensino superior privado, indicando que alguns rendimentos muito elevados "puxam" a média dessa categoria. Em outras palavras, há aparentemente muitos rendimentos elevados entre os estudantes de ensino superior público, a ponto de fazer a média desses alunos superar aquela de alunos de ensino superior privado. É importante ressaltar que a tabela requer cuidado, pois meus procedimentos não são os mais fortes para uma inferência, ou seja, para detectar diferença estatística relevante entre os grupos (vide **). 

Tabela 2 - Renda Habitual de todo tipo de trabalho para o domicílio Brasil e grupos de acordo com a escolaridade
Recorte Populacional
Renda Habitual do Trabalho - Mediana
Renda Habitual do Trabalho - Média
Brasil
1200
2096
Estudantes de Ensino Superior Público
1200
2309
Estudantes de Ensino Superior Privado
1500
2177
Pessoas que concluíram o curso superior
3000
4865
Fonte: Dados de amostra da PNAD contínua IBGE 2017 (Suplemento Educação).

O parágrafo ora em análise também diz que "mais de 60% estudaram em escolas públicas". Infelizmente, a PNADc precisaria de um trabalho mais demorado para descobrir qual a instituição de ensino anterior dos alunos presentes na amostra, além disso, por ela dificilmente conseguiríamos descobrir a instituição pregressa de todos os estudantes, mas dá pra fazer uma tabela mais rápida comparando a afirmação da pesquisa desconhecida com o quadro atual de estudantes de 15 a 18 anos no ensino médio do Brasil todo.

A tabela 3 mostra então que algo que parecia excepcional, na verdade é o mais comum. Pode-se afirmar inclusive o contrário, a universidade pública possui um pouco menos de alunos provenientes de instituições públicas do que é observado no ensino médio brasileiro. Seguindo os dados da pesquisa do panfleto, o ensino superior público brasileiro não segue tão de perto a proporção público/privada dos alunos do ensino médio de todo o país (de 15 a 18 anos). Entra proporcionalmente mais gente que fez educação privada do que pública,  apesar da Lei 12.711 de 2012.***

Tabela 3 - Tipo de Escolas do Estudante de Ensino Superior e do Ensino Médio
Grupo
Escola Pública
Escola Privada
Alunos do Ensino Superior Público onde estudaram†
60%
40%
Alunos do Ensino Médio de 15 até 18 anos‡
88%
12%
†Fonte: Pesquisa desconhecida do panfleto (fala mais de 60% sem especificar o número exato).
‡ Fonte: Dados de amostra da PNAD contínua IBGE 2017 (Suplemento Educação) alunos de 18 anos inclusive.

Terminando essa parte das más notícias, fiz uma tabela pela cor de pele declarada. Como é bem sabido (e me parece que criticado pelos grupos afirmativos), o IBGE faz a categorização de cor como "preto", "pardo", "indígenas", "amarelos" e "brancos". Em muitas pesquisas sociais recentes convencionou-se somar a autodeclaração "preto" ou "parda" do IBGE como "negros", a quarta linha da tabela 4 (recuada) mostra essa soma. A tabela 4 mostra que a proporção de "brancos" e "negros" da PNADc é diferente daquela encontrada pela pesquisa anônima. Mais importante do que isso é destacar como a amostra de estudantes é diferente da amostra da população brasileira. A população brasileira é majoritariamente negra (55.46% de pretos ou pardos), as Instituições de Ensino Superior (IES) são majoritariamente brancas, as privadas com um percentual um pouco maior do que as públicas. Rapidamente pode-se notar como a última coluna (pessoas que já concluíram o curso superior é majoritariamente branca).

Tabela 4 - Cor de Pele declarada para diferentes grupos, Brasil, Estudantes Público e Privadas
Cor
Brasil
Estudantes Superior IES Públicas
Estudantes Superior IES Públicas ou Privadas
Curso Superior
Branco
43.75%
51.23%
54.39%
66.27%
Pardo
47.30%
39.10%
37.04%
26.45%
Preto
8.16%
8.22%
7.78%
5.42%
Negros
55.46%
47.33%
44.82%
31.87%
Amarelos
0.55%
1.11%
0.60%
1.73%
Indígenas
0.24%
0.29%
0.14%
0.12%
Não Identificado
0.01%
0.04%
0.05%
0.01%
Fonte: Dados de amostra da PNAD contínua IBGE 2017 (Suplemento Educação).

Em resumo, a má notícia dessa seção é que a educação superior pública brasileira não é tão inclusiva quanto dá a entender o parágrafo analisado. Dados mais confiáveis não estão em linha com a pesquisa sem fonte citada. O copo não está tão cheio assim!

***

Boas Notícias


A boa notícia é que, sem precisar exagerar os dados, é possível concordar com o grifo: "A universidade se tornou melhor quando se abriu para o povo nos últimos anos". Para isso precisamos entender o quão seletiva era a universidade pública brasileira, a última coluna das tabelas 1 e 4, que mostra as pessoas que já concluíram a educação superior, foi guardada para explicar isso.

A educação superior pública brasileira já foi muito menos inclusiva do que é hoje. A renda familiar de quem já tem um curso superior é majoritariamente maior do que 2 salários mínimos. Para uma pesquisa mais acadêmica seria preciso controlar que a composição etária desse grupo é bem diferente daquela presente no grupo dos estudantes, e possivelmente diferente daquela do Brasil todo. Mas o importante para esse texto é dar a ideia geral de como a educação superior brasileira era algo para poucos, como já expliquei na postagem sobre as universidades All Inclusive. Eu sou um beneficiário desse último grupo.

O mesmo pode ser conferido na última linha da tabela 2, que mostra a renda mediana e a média de quem já concluiu o curso superior. A média de quem já concluiu um curso superior é mais do que o dobro da média da renda nacional. Os dois gráficos abaixo mostram o mesmo que a tabela 2 com mais detalhes. Nota-se que a distribuição de renda é bastante assimétrica à direita, com a cauda direita longa para as duas distribuições, mas a renda de quem não tem ensino superior é muito mais concentrada em rendimentos baixos, com sua mediana em 1200 reais mensais, como vimos, e a renda mediana de quem tem ensino superior é de 3000 reais mensais.

Gráfico 1 - Rendimentos dos Brasileiros com e Sem Ensino Superior (acima  a densidade e abaixo a acumulada)

Fonte: Dados de amostra da PNAD contínua IBGE 2017 (Suplemento Educação). OBS: para uma melhor representação os dados estão censurados em 20000 reais.

Coloquei boas notícias no plural. Outras boas notícias dizem respeito que, além do quadro geral estar melhor, universidades (públicas e privadas com um pouco mais de enfase para as primeiras) se tornaram mais inclusivas. Isso muito provavelmente deve se dar por conta das políticas públicas para o ensino superior. Ações afirmativas, a lei 12.711/2012 mencionada, o SISU, o REUNI, PROUNI e FIES. É preciso analisar cada parte responsável, mas aparentemente esse conjunto de políticas realmente "abriu a universidade para o povo", ou seja, para uma população mais com a cara do Brasil, tornando a universidade menos elitista.

Para afirmar que a universidade "melhorou" é preciso de qualificar o tipo de comparação: "em relação à quê?". Ao considerar que o acesso mais representativo da população é uma melhora, podemos dizer que "sim, houve melhora".

Em relação à qualidade de ensino e qualidade dos cursos, os desafios são enormes e minha impressão é de que a universidade não se adaptou muito a isso. É difícil avaliar a qualidade e temos de lembrar para quem a universidade estava voltada. Nós continuamos ensinando como há 20 anos atrás e talvez isso seja um dos motivos de termos uma evasão tão alta (tanto no público quanto no privado, aqui e aqui).

***

Conclusões

O que falta?! Obviamente o que falta é dinheiro. Talvez a tabela 2 me ajude um pouco com o argumento que pretendo fazer. Note que entre os estudantes de Ensino Superior Público a mediana está igual a do Brasil (ok, característica da inclusão recente), entretanto repare tambem que a média é maior do que nas universidades e faculdades privadas. Tem alunos ali com rendimento familiar per capita extremamente alto. Como mostrei na minha postagem passada, os rendimentos privados de uma educação superior pública podem chegar a uns 25% ao ano. Para quem tem famílias de posses e condições de achar um emprego de salário médio bem maior  do que a média, não tenho dúvidas de que os retornos anuais podem ser ainda maiores.

Novamente fica a pergunta que coloquei naquela postagem: "Por que aqueles que tem condição de pagar pelo ensino superior não podem pagar por esse ensino público de qualidade?"

Continuo sem resposta e a universidade  contínua sem dinheiro.

***

Notas de rodapé:

* Enquanto escrevo este texto soube da polêmica causada por uma nota do MEC publicada na última quinta-feira dia 30/05, no dia das manifestações e protestos. Debati o assunto com amigos contra e a favor da nota. Por conta dos meus princípios, não concordo com a "intenção" da nota, sou a favor da livre manifestação ideológica, partidária, política, etc. Minha opinião sobre o tal projeto "escola sem partido" é praticamente a mesma. Não concordo com o projeto, ele pressupõe que todos os professores podem ser anti-éticos e não profissionais. De fato, existem professores com essas duas características (que não por coincidência andam juntas). Mas ao invés de instigar um clima de perseguição seria melhor ajudar a debater como o nível ético de professores e profissionais da educação pode ser mais elevado, distinguir o que é opinião do que é conhecimento é importante. Para muitas áreas do saber essa linha é bastante difícil de ser delimitada.

Não tenho conhecimentos jurídicos administrativos para julgar quem está certo ou errado nessa polêmica, acompanharei as notícias desse caso. A nota apenas me pareceu desnecessária.

** Trabalhar com a PNAD contínua requer ainda mais atenção do que com a PNAD cross-section anterior. Eu ainda estou me aperfeiçoando nessa técnica de trabalhar com a PNAD contínua. Na nova PNAD será preciso "empilhar" várias PNADs para conseguir a amostra completa dos domicílios. Isso deixa o desenho amostral da PNAD ainda mais complicado, mas por outro lado vai ajudar o pesquisador a ter uma ideia mais longitudinal de algumas características domiciliares. Essa página do Dr. Djalma Pessoa é muito referenciada para conseguir utilizar a PNAD contínua, usei muito dela para aprender sobre essa nova PNADc. 

O desenho amostral da PNAD é complicado, fiz duas rotinas para captar os dados com que trabalho nesse texto. A primeira seguiu bastante os passos acima e utilizei o pacote "survey" do R para considerar o desenho amostral. Entretanto cada tabela estava rodando de maneira muito lenta no meu computador e estava difícil testar as informações ora de um jeito e ora de outro. Preferi adotar uma rotina mais leve, que corresponde aos dados reportados.

Essa rotina leve tem a vantagem de fazer pesquisas de maneira super rápida e me agilizou o trabalho, porém, como esperado, os erros-padrão obtidos com ela ficam subestimados. Meu procedimento foi fazer uma amostra de 1 milhão de pessoas considerando o "Peso trimestral com correção de não entrevista com pós estratificação pela projeção de população" que está no dicionário da PNAD. Isso me deixa com um banco mais leve mas com uma amostra que possui erros-padrão muito menores do que aquela que considera a amostra completa e o desenho amostral. Fiz uma pequena conferência para ver essa diferença, minha amostra acerta nos valores dos parâmetros (nas proporções apresentadas) mas não será muito confiável para construir intervalos de confiança.

Não há muitos problemas nisso para o que vou utilizar nesse texto, pois não fiz nenhuma inferência e nenhuma regressão, são apenas as tabelas descritivas sem testes estatísticos.

*** Isso não quer dizer que a Lei não esteja sendo cumprida, mas sim que apesar da lei, a seleção que ocorre ainda no vestibular é ainda excludente. A educação básica precisa de melhorias para permitir acesso para mais alunos provenientes de escolas públicas. Mais ainda, as instituições de ensino não precisam se prender apenas à letra da Lei, podem tomar também outras iniciativas paralelas para promover a maior inclusão, uma delas pode ser inclusive ser mais atuante para melhorar a qualidade do ensino básico.


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